segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Por meus olhos: Uma partida da NAUvoadora

Foi como a imagem da pedra varando a face das águas. Primeiro o impacto e os respingos, ritmo de explosão reversa, escultura deliquescente disforme dilatada dentro do segundo exato do choque. Depois os círculos vibrando na pele líquida, e os minutos se espraiando em ondas. Foi como um lago que se deixa percorrer pelo arrepio da pedra no fundo, pesando sua fundura inerte. Ao tempo que as correntes não calam em sua prisão desce um correr fluxo, sentido, vereda. Bifurcação infinita de setas, sinais, signos e constelações no espelho das águas e elas passando, rolando sobre suas próprias longas sendas. A pedra e as águas represadas. Foi assim a Nau em busca dos foras do porto, dos longes em cima de linhas de horizonte, das longitudes do enigma da noite. Foi assim que a cidade tornou-se o próprio rio, ressinificando Jussara na liturgia da tribo devastada e Domingos no calendário dos altares de ouro e prata. Foi a ladeira aplanando como a linha da folha, como o risco da letra I sendo golpe primeiro na tela. Foi o olho do espanto escancarando em cancela e cílios sendo dentes pelos de pavor desurdidos. Foi o som perdendo abóbadas entre pingos, nuvens e lamparinas apartadas no negro silêncio de além-atmosferas. A corda vibrando sob a unha, a tecla espancada nas escalas, a voz escarrada na calçada. O compasso quebrando nas quiálteras e no composto das pisadas. Foi a voz do rosto em cada um dizendo tudo do cansaço à fome de baralhar versos entre dados adulterados, entre lavras de insepultos versificados cantos entre as pedras. Foi o pé na madeira, o som nos ventos, a luz nas lentes, a palavra entre dentes. Foi a garrafa arremessada nas laterais negras da embarcação e ela largando das tábuas do mundo, da pedra, da folha. Eu vi. Eis.

Agosto de 2013

domingo, 13 de outubro de 2013

Dar a ver Igarassu


A cidade abriu,


oferecendo-se como uma puta,

o poeta,

com seu sexo nos olhos,

penetrou-a, frio e máquina,

no recanto mais íntimo,

fenda dentro da fenda,

nas entranhas dela

 

ele sorveu tudo pelos olhos,

digeriu,

depois escarrou no papel,

dolorosamente

A uma mulher sem nome

És o signo
que intranqüiliza
o texto de meu corpo.

E me desveste
os trajes de pedra
e vidro e máquina.

E me ensina
a nudez mais frívola
e prosaica e pragmática.

Passeio Público


I

Avenida,

 

Serpente em ebulição,

 

Zoom repintando

 

Na tela de cristal líquido

 

Escamas de dragão,

Lagarto em arco-íris,

Réptil ao vivo e a cores,

Sem vestígios de hemoglobina

Nas bandeiras fincadas

No relevo dorsal,

 

II

Avenida,

           

            Galho onde o camaleão equilibra,

 

Linha de passar a língua,

 

Eriçando as paredes em nudez

 

De arranha céu

 

Ali seus passos (Saltando

Para sala de estar via 3D

Junto com brasões indecifrados

Nas patas, nas costas,

Nos sulcos das costelas,

Entre as nervuras da pele,

Nas paredes das artérias,

No teto em rachadura do crânio,

Bem atrás das duas candeias)

 

São soterrados pela elipse

Na escala descendente

 

De

            Um

                        Grito
 
 
III

Avenida,

 

           

            Tarântula em carne viva,

 

Incêndio de patas semifusas

 

em rubato,

 

Bicho que manchando a lente

Das libélulas de aço,

Desconcerta o voo, diz farsa.

Distorce megapixels em sépia,

Mastiga um carro blindado,

Cospe um cadáver de olhos

 

Vazados

 

Por onde gotejando

O pus de toda cidade

 

IV

Avenida,

 

            Cobra de duas cabeças

 

De vidro temperado

 

            Pela areia dos poros,         pele do deserto,

 

Num megafone, meio de rua,       alguém ordenando:

 

“Grafitar o verso anterior nas sendas do corpo.

Depois os passos. A torrente dos fartos.

Gravar no asfalto a chama dos descalços.”

 

E o bicho enfia-se de cabeça

No ralo em redemoinho

 

Rumo à lama e às plumas de outra fera

quinta-feira, 4 de abril de 2013

"A monarquia vai voltar pro Brasil"

     Também me espantei com essa declaração quando pus os pés hoje no terminal da macaxeira. Uma senhora muito bem vestida, com postura e impostação vocal dignas de um arauto da família real vomitava aos quatro cantos mal projetados daquele lugar de suplício a mais nova e absurda profecia de terminal. Para os bem-aventurados que não precisam passar todos os dias pelos purgatórios que eufemicamente chamamos de integrações fica difícil explicar a tortura que é além de esmagado, ofuscado, violentado pelos outros, ser alvo das pregações messiânicas desses seres sacrossantos que chamo carinhosamente de profetas de terminal tão solícitos em nos apontar os caminhos mais largos para as chamas e o ranger de dentes enquanto esperamos nossos cubículos sobre rodas. Tenho ainda mais dificuldade de explicar o esforço imenso que fiz para não cair numa crise de riso irreversível quando tomei conhecimento de uma notícia tão importante para nossa identidade nacional. Depois do primeiro choque tentei construir linhas de raciocínio que me apontassem a sanidade mental da digníssima senhora (eu sinceramente simpatizei com aquele rosto que parecia conter alguma bondade) ela poderia estar usando o discurso figurativo para anunciar o reinado de Cristo (o que não deixaria de me assustar por que não consigo imaginar a figura de Cristo junto ao que a maioria das monarquias representou ao longo dos séculos) ocorre que ela resolve explicar mais e dizer que teremos um rei assim como Dom Pedro I o que levou definitivamente minhas esperanças de que tudo não passasse de um lance de oratória para atrair a atenção do povo. Também não posso deixar de observar que até aqui temos uma profetisa diferenciada, nada de versículos soltos falando de maldições e castigos, nada de avisos sobre dias e horários do julgamento final, nada de acusações cuspidas nos rostos de quem se arrasta nas filas, parecia realmente se tratar de uma enviada especial de alguma corte obscura talvez escondida em algum bairro nobre de nossas metrópoles apenas esperando o momento mais dramático para dar seu golpe de estado restaurando democraticamente pela vontade do rei um regime que fora soterrado por um século de avanços ( e muitos retrocessos, claro) e uma humanidade que mal engoliu e hoje talvez só tolere por puro folclore as monarquias de vitrine que ainda resistem em alguns locais do mundo os quais prefiro não referir por uma questão de respeito a quem simpatiza com velhinhas bonachonas usando coroas e cetros de ouro...
         Por fim o momento mais aterrador foi quando ela revelou que fora enviada por Deus para anunciar a nova (que está muito longe de ser boa e deixo bem claro o misto de tristeza e revolta diante de desvios tragicômicos como o dessa iluminada pela ignorância). A partir daí percebi a inutilidade de perguntar se teríamos uma monarquia parlamentarista. Com certeza uma legitimação tão incontestável não deixa margem para duvidar que nos salões do palácio do planalto se ouvirá por muitas gerações o toc-toc de sapatos à la Luis XIV.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Pluviômetro


Nestes dias em que chove gente nas ruas de Recife e os transeuntes finalmente resolvem andar olhando para cima, mesmo que não seja buscando a contemplação do espetáculo celeste e sim preservar sua integridade física, ousei contemplar o espetáculo patético de nosso desespero. Ah como gostamos de resolver as coisas dando saltos mortais de vigésimos andares de prédios decrépitos e como gostamos mais ainda de ficar ali circundando a poça desconjuntada na calçada enquanto não chega nossa vez de pedir ao ascensorista: “Último andar, por favor. Vou chover sobre Recife.” Não, não se preocupe que ele não vai te achar um louco, muito menos olhar dentro de seus olhos procurando os indícios de tua insanidade, ele mesmo já marcou a atividade pluviométrica dele para as oito horas, prefere a noite, tem algo de poeta este ascensorista, querendo chover entre as estrelas, pra depois estourar-se entre estrumes e latinhas de cerveja no meio fio. Naquele momento com certeza os boletos, os recibos, os exames, os processos e toda sua vida de merda e papéis estufando sua parca carteira não passarão do chão duro da Avenida Dantas Barreto, sem contar os segundos que ele terá num voo tantas vezes adiado, desde a infância, embora naquela época ainda esperasse uma aterrissagem menos traumática. Hoje sabe que terá uma morte instantânea, já fez todos os cálculos, velocidade do vento, seu peso vezes x e mais um bocado de sorte para cair de cabeça, tudo pensado para não dar trabalho à morte. Mas que coisa, este herói quase me faz perder a direção que eu queria dar a estas linhas! É que ele carrega essa simpatia perturbadora de uma espécie de suicida que te engana direitinho. “Esse cara é de bem com a vida”, “Ele é que é feliz”, “Que inveja desse sorriso, quase rasgando a boca” tudo não passando de um véu frágil, grande fingidor este rosto de bigodes fartos e olhos fundos com uma voragem dentro do peito contando regressivamente para a decolagem. Deixemo-lo subindo e descendo nesta gaiola, cumprimentando a próxima gota deste temporal inesperado, talvez uma senhora bem vestida, segurando seu último cigarro ou um rapazote tímido tossindo ao dar sua primeira tragada, ou então esta moça bonita, este homem de terno listrado, o outro segurando um violão... Veja só como este cubículo está lotando e agora fica difícil definir quem é quem, pois então fiquem assim todos agarrados, subindo, descendo, subindo, desce... até que alguém diga: “Tá bom. Agora eu vou.Cansei dessa brincadeira idiota” E os outros ficarão esperando o baque surdo e a gritaria dos vendedores de pipoca, dos cobradores na janelas dos ônibus, e os passos medidos do policial, mãos presas às costas, revólver cintilando ao cruzar a luz do poste, rosto tão vazio quanto o do menino, ao lado do cigarro que não mais lhe pertence. Que esta cena congele, eu não me propus visitar tantos rostos, queria apenas justificar este meu novo hábito de andar perscrutando as marquises, não é só medo de morrer assassinado por um suicida, é que além do imenso transtorno eu acabaria perdendo a beleza que deve ser o vôo dentro da noite e da cidade, quando tudo vira um só, quadrado dentro do círculo, unidade e fragmento, poesia e bula de remédio, quando nada mais importa. Olho para cima. Imagino as nuvens dançando sobre todos esses tetos e agora que apareceu uma vaga neste elevador tenho que entrar. Um rosto de bigodes fartos e olhos fundos me encara.

“Último andar, por favor. Vou chover sobre Recife”


Jonatas Onofre 18/05/12

sábado, 9 de março de 2013

Sobre calendários e Almas

Um amigo me falou sobre um congestionamento de almas nas proximidades do sítio dos Marcos aqui em Igarassu... sim um grande transtorno para quem tencionava comemorar um dia tão importante como este 09 de março, distante quase quinhetos anos de um outro dia comum com o mesmo marulhar de ondas, com som de pássaros e de folhas sendo remexidas pelo vento... sim... aconteceu um 09 de março maravilhoso para um bando de heróis que pisou neste chão com ordens reais nos bolsos e muito desejo de posse (diga-se direito legítimo de cobiça) no peito e nos olhos. Dia de sol e fim de espera, dia de grandes começos e progresso, uma dia único na vida de vários povos. Uma encruzilhada da história, um capricho do tempo em conspiração com o calendário juliano, uma ruptura na diacronia sempiterna e organizada de nossos livros didáticos. 
Hoje pra mim não é dia de festa... cada segundo desse dia deveria ser preenchido de versos para uma infinita elegia pelos milhares de corpos que o tempo devorou, oficial e sacrossantamente, a partir de um fatídico 09 de março. Não condenarei à mesma condição desterrada dos índios que não mais correm perto das águas aos distintos cidadãos que hoje dançam ciranda perto das águas ou tecem louvor à grande empresa lusitana... mas é uma pena que não lembrem...nem chorem... Dom Duarte e sua imagem severa e fascinante de soldado, administrador, déspota e herói épico de uma Nova Lusitânia que me perdoe a ousada investida destas letras mas calar dói muito mais que o desabafo...
Pois lembremos dos índios em seu congestionamento etéreo que eles devem ter lembrado de hoje também e vieram de onde quer que estivessem com seus corpos pintados de urucum, seus brincos e ossos e seu sangue de Uirapitang, suas feridas de mosquetes e bestas, suas chagas purulentas, seus pulmões podres de uma gripe sazonal inofensiva, seus olhos de indiferença perdidos num céu de araras e nuvens... Ah tantas almas voando enquanto muitos dançam e esquecem e desconhecem seus nomes. Comemoro hoje com marcos de pedra, lama e sangue o início de um genocídio... e espero que todas as almas organizem-se em fila indiana para seu passeio por aquelas bandas e voltem logo para seus lugares... afinal tem muita gente que deve estar louca pra fazer festa hoje e engrandecer grandes vultos de nossa história... neste grande dia de nossa vergonha... e pelo visto alma de índio só atrapalha numa hora dessas.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Castrati

Pesava-lhe o verbo,
entre as pernas.
Por isso capou-se
numa manhã de oficina.

Hoje pesa-lhe
entre as pernas
uma elipse

domingo, 27 de janeiro de 2013

Telejornal



Para Claudio Daniel

As antenas refulgem
nas pedras longe de Gaza
à luz de uma estrela
dessas de quinta grandeza.

Faz uma imagem limpa
em 29 polegadas e é fácil
controlar o volume do sangue
com o controle remoto

mas nós sabemos
que este sol é uma farsa
e que as parabólicas 
devoram cadáveres 
e escondem os ossos sob a areia.