quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Os Espelhos da Retina


"São os teus olhos a luz de teu corpo"
Jesus Cristo

As pálpebras unidas. Formando a linha de carne, fronteira escura e silente. Sugerindo dentro das trevas uma nova fauna, e a selva emaranhando-se em carícias, revolta, crescendo no vazio. É dentro desta muralha, onde a carne torna-se pedra e gume, e os vidros em lâminas se destilam, num rio de cacos e fragmentos, correnteza e queda, além do intransponível, onde as horas tornam-se farelos ao vento, restos do vômito de cronos, liberdade perecendo. O poeta aventura-se por tais veredas, em sua loucura de sóis e pássaros, abrindo portas nos corredores do silêncio e deparando-se com mais portas, e câmaras e corredores, até se aperceber do labirinto e seus dentes de segredo. Enquanto fechados, e não imersos no sono, os olhos despertos no escuro visitam as paragens onde nunca foram, onde não estão, nem conhecem, mas de onde nunca saíram. Os olhos fechados, nesta teia de cílios, neste esmagar de nervos, no rasgar de peles e pêlos, soltam-se das órbitas, viajam em seu girar, como balões de sangue e lágrima. Único espelho a funcionar no completo vazio, na própria ausência da superfície polida ou gasta, a retina é aquilo que devora as coisas em suas fronteiras dentro dos instantes. Dar a ver e ver-se. Diante da imagem o poeta e seu espanto. Não lhe serviria saber o que é poesia, não teria tempo de preparar seu cérebro azul para receber iluminação tão terrível, sem sangrar por todos o poros que o corpo abrisse. Há o medo dessa morte e castigo, medo de descobrir esta única verdade absoluta. Mas ao mesmo tempo há o que impele o corpo dentro das manhãs solares, o que impele as mãos sobre a superfície branca, o que impele os ouvidos dentro das paredes do silêncio, o que abre os espelhos da retina sobre a quadratura circular do mundo e ensina o segredo indizível e sereno antes de desferir o golpe certeiro entre os dois lumes em nossos rostos.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Liturgia do Vazio

Olhar as coisas em suas indefinições, dentro das névoas e cortinas, enigmas, labirintos. Buscar o mistério das coisas. O poeta em sua devoção pela procura não deve temer o perder-se, muito menos as trevas, nossa essência barroca, ou seja lá o que for, isso que nos tensiona sobre a fronteira entre a luz e a treva. Luz que revela, limpa, solar e exata, das oficina nas manhãs, dentro das alvas, luz que desperta e também cega. Trevas que sugerem, férteis, oníricas e inexatas, tentações de imaginação. O jogo eterno que coloca poeta e poesia no centro. Daí a angústia de criar tendo sobre a cabeças as espadas de dois mundos, o temor de algo mais profundo e terrível. Saltar no vazio, praticar o suicídio diário é o que faz o poeta. Ao acreditar na poesia. Mesmo sem saber sua definição. Se poeta é o que faz poesia o que é fazer poesia? será que quem lê não mergulha no suicídio cotidiano da busca também? não existe fim no poético, ele sempre excede, expande e condensa. Num jogo de opostos que o pereniza e sustenta. Quem lê precisa ser mais poeta que quem escreve (quem disse foi Leminsk) e eu acredito. Acredito na poesia das coisas. Na poesia como o mistério de todas as coisas assim como todas as coisas tem seu mistério (quem me ensinou isso foi Lorca). A poesia penetra-nos a profundeza e revela o quanto de mistério medra em nosso corpo e alma. Não existe religião no poético, mais há a liturgia do vazio, o culto solitário da forma, o cântico dos olhos em fuga, esquadrinhando o mundo, perscrutando as distâncias dentro das horas e querendo sorver o mundo, e querendo deixar-se devorar. A dor do vazio atrai, num paradoxo incontornável. E prosseguimos até a borda do nada. Nos resta perder o medo... e saltar.

Kamikaze

I.
Provocar o vazio
e dar o salto.
Ir além da linha, dissipá-la
e negar o abismo sem sorvê-lo.
Ser apenas queda
sem escalas.
Deixar o corpo
aceso dentro da hora
e congelar os transeuntes,
os carros, as nuvens
na dança estática do agora.
Deixar-se no poema que inaugura
a tarde da cidade.
E fechar os olhos
lentamente
enquanto o sangue ainda arde.

II.
Olhar através do concreto.
O céu arranhado da cidade.
A hemorragia do ocaso
Ignorada no vôo.
E sentir-se exato
ao verter o enigma.
E não voltar atrás
antes da borda do vazio.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Poema I

Duas esfinges devorando-se
entre as paredes do silêncio.
palavras
coagulam
junto ao enigma.