Foi como a imagem da pedra varando a face das águas. Primeiro o impacto e os respingos, ritmo de explosão reversa, escultura deliquescente disforme dilatada dentro do segundo exato do choque. Depois os círculos vibrando na pele líquida, e os minutos se espraiando em ondas. Foi como um lago que se deixa percorrer pelo arrepio da pedra no fundo, pesando sua fundura inerte. Ao tempo que as correntes não calam em sua prisão desce um correr fluxo, sentido, vereda. Bifurcação infinita de setas, sinais, signos e constelações no espelho das águas e elas passando, rolando sobre suas próprias longas sendas. A pedra e as águas represadas. Foi assim a Nau em busca dos foras do porto, dos longes em cima de linhas de horizonte, das longitudes do enigma da noite. Foi assim que a cidade tornou-se o próprio rio, ressinificando Jussara na liturgia da tribo devastada e Domingos no calendário dos altares de ouro e prata. Foi a ladeira aplanando como a linha da folha, como o risco da letra I sendo golpe primeiro na tela. Foi o olho do espanto escancarando em cancela e cílios sendo dentes pelos de pavor desurdidos. Foi o som perdendo abóbadas entre pingos, nuvens e lamparinas apartadas no negro silêncio de além-atmosferas. A corda vibrando sob a unha, a tecla espancada nas escalas, a voz escarrada na calçada. O compasso quebrando nas quiálteras e no composto das pisadas. Foi a voz do rosto em cada um dizendo tudo do cansaço à fome de baralhar versos entre dados adulterados, entre lavras de insepultos versificados cantos entre as pedras. Foi o pé na madeira, o som nos ventos, a luz nas lentes, a palavra entre dentes. Foi a garrafa arremessada nas laterais negras da embarcação e ela largando das tábuas do mundo, da pedra, da folha. Eu vi. Eis.
Agosto de 2013
segunda-feira, 11 de novembro de 2013
domingo, 13 de outubro de 2013
Dar a ver Igarassu
A uma mulher sem nome
És o signo
que intranqüiliza
o texto de meu corpo.
E me desveste
os trajes de pedra
e vidro e máquina.
E me ensina
a nudez mais frívola
e prosaica e pragmática.
Passeio Público
I
Avenida,
Serpente em ebulição,
Zoom
repintando
Na
tela de cristal líquido
Escamas
de dragão,
Lagarto
em arco-íris,
Réptil
ao vivo e a cores,
Sem
vestígios de hemoglobina
Nas
bandeiras fincadas
No
relevo dorsal,
II
Avenida,
Galho onde o camaleão equilibra,
Linha
de passar a língua,
Eriçando
as paredes em nudez
De
arranha céu
Ali
seus passos (Saltando
Para
sala de estar via 3D
Junto
com brasões indecifrados
Nas
patas, nas costas,
Nos
sulcos das costelas,
Entre
as nervuras da pele,
Nas
paredes das artérias,
No
teto em rachadura do crânio,
Bem
atrás das duas candeias)
São
soterrados pela elipse
Na
escala descendente
De
Um
Grito
III
Avenida,
Tarântula em carne viva,
Incêndio
de patas semifusas
em rubato,
Bicho
que manchando a lente
Das
libélulas de aço,
Desconcerta
o voo, diz farsa.
Distorce
megapixels em sépia,
Mastiga
um carro blindado,
Cospe
um cadáver de olhos
Vazados
Por
onde gotejando
O
pus de toda cidade
IV
Avenida,
Cobra de duas cabeças
De
vidro temperado
Pela areia dos poros, pele do deserto,
Num
megafone, meio de rua, alguém
ordenando:
“Grafitar
o verso anterior nas sendas do corpo.
Depois
os passos. A torrente dos fartos.
Gravar
no asfalto a chama dos descalços.”
E
o bicho enfia-se de cabeça
No
ralo em redemoinho
Rumo
à lama e às plumas de outra fera
quinta-feira, 4 de abril de 2013
"A monarquia vai voltar pro Brasil"
Também me espantei com essa declaração
quando pus os pés hoje no terminal da macaxeira. Uma senhora muito bem vestida,
com postura e impostação vocal dignas de um arauto da família
real vomitava aos quatro cantos mal projetados daquele lugar de
suplício a mais nova e absurda profecia de terminal. Para os bem-aventurados
que não precisam passar todos os dias pelos purgatórios que eufemicamente
chamamos de integrações fica difícil explicar a tortura que é além de esmagado,
ofuscado, violentado pelos outros, ser alvo das pregações messiânicas desses
seres sacrossantos que chamo carinhosamente de profetas de terminal tão
solícitos em nos apontar os caminhos mais largos para as chamas e o ranger de
dentes enquanto esperamos nossos cubículos sobre rodas. Tenho ainda mais
dificuldade de explicar o esforço imenso que fiz para não cair numa crise de
riso irreversível quando tomei conhecimento de uma notícia tão importante para nossa
identidade nacional. Depois do primeiro choque tentei construir linhas de
raciocínio que me apontassem a sanidade mental da digníssima senhora
(eu sinceramente simpatizei com aquele rosto que parecia conter alguma
bondade) ela poderia estar usando o discurso figurativo para anunciar o reinado
de Cristo (o que não deixaria de me assustar por que não consigo imaginar a
figura de Cristo junto ao que a maioria das monarquias representou ao
longo dos séculos) ocorre que ela resolve explicar mais e dizer que teremos um
rei assim como Dom Pedro I o que levou definitivamente minhas esperanças de que
tudo não passasse de um lance de oratória para atrair a atenção do povo. Também
não posso deixar de observar que até aqui temos uma profetisa diferenciada, nada
de versículos soltos falando de maldições e castigos, nada de avisos sobre dias
e horários do julgamento final, nada de acusações cuspidas nos rostos de quem
se arrasta nas filas, parecia realmente se tratar de uma enviada especial de
alguma corte obscura talvez escondida em algum bairro nobre de
nossas metrópoles apenas esperando o momento mais dramático para dar seu
golpe de estado restaurando democraticamente pela vontade do rei um regime que
fora soterrado por um século de avanços ( e muitos retrocessos, claro) e uma humanidade que mal engoliu e hoje talvez só tolere por puro folclore as monarquias
de vitrine que ainda resistem em alguns locais do mundo os quais prefiro não
referir por uma questão de respeito a quem simpatiza com velhinhas bonachonas
usando coroas e cetros de ouro...
Por fim o momento
mais aterrador foi quando ela revelou que fora enviada por Deus para anunciar a
nova (que está muito longe de ser boa e deixo bem claro o misto de tristeza e
revolta diante de desvios tragicômicos como o dessa iluminada pela ignorância).
A partir daí percebi a inutilidade de perguntar se teríamos uma
monarquia parlamentarista. Com certeza uma legitimação tão incontestável não
deixa margem para duvidar que nos salões do palácio do planalto se ouvirá por
muitas gerações o toc-toc de sapatos à la Luis XIV.
quinta-feira, 14 de março de 2013
Pluviômetro
Nestes dias em
que chove gente nas ruas de Recife e os transeuntes finalmente resolvem andar
olhando para cima, mesmo que não seja buscando a contemplação do espetáculo
celeste e sim preservar sua integridade física, ousei contemplar o espetáculo
patético de nosso desespero. Ah como gostamos de resolver as coisas dando
saltos mortais de vigésimos andares de prédios decrépitos e como gostamos mais
ainda de ficar ali circundando a poça desconjuntada na calçada enquanto não
chega nossa vez de pedir ao ascensorista: “Último andar, por favor. Vou chover
sobre Recife.” Não, não se preocupe que ele não vai te achar um louco, muito
menos olhar dentro de seus olhos procurando os indícios de tua insanidade, ele
mesmo já marcou a atividade pluviométrica dele para as oito horas, prefere a
noite, tem algo de poeta este ascensorista, querendo chover entre as estrelas,
pra depois estourar-se entre estrumes e latinhas de cerveja no meio fio.
Naquele momento com certeza os boletos, os recibos, os exames, os processos e
toda sua vida de merda e papéis estufando sua parca carteira não passarão do
chão duro da Avenida Dantas Barreto, sem contar os segundos que ele terá num voo tantas vezes adiado, desde a infância, embora naquela época ainda esperasse
uma aterrissagem menos traumática. Hoje sabe que terá uma morte instantânea, já
fez todos os cálculos, velocidade do vento, seu peso vezes x e mais um bocado
de sorte para cair de cabeça, tudo pensado para não dar trabalho à morte. Mas
que coisa, este herói quase me faz perder a direção que eu queria dar a estas
linhas! É que ele carrega essa simpatia perturbadora de uma espécie de suicida
que te engana direitinho. “Esse cara é de bem com a vida”, “Ele é que é feliz”,
“Que inveja desse sorriso, quase rasgando a boca” tudo não passando de um véu
frágil, grande fingidor este rosto de bigodes fartos e olhos fundos com uma
voragem dentro do peito contando regressivamente para a decolagem. Deixemo-lo
subindo e descendo nesta gaiola, cumprimentando a próxima gota deste temporal
inesperado, talvez uma senhora bem vestida, segurando seu último cigarro ou um
rapazote tímido tossindo ao dar sua primeira tragada, ou então esta moça bonita,
este homem de terno listrado, o outro segurando um violão... Veja só como este
cubículo está lotando e agora fica difícil definir quem é quem, pois então
fiquem assim todos agarrados, subindo, descendo, subindo, desce... até que
alguém diga: “Tá bom. Agora eu vou.Cansei dessa brincadeira idiota” E os outros
ficarão esperando o baque surdo e a gritaria dos vendedores de pipoca, dos
cobradores na janelas dos ônibus, e os passos medidos do policial, mãos presas
às costas, revólver cintilando ao cruzar a luz do poste, rosto tão vazio quanto
o do menino, ao lado do cigarro que não mais lhe pertence. Que esta cena
congele, eu não me propus visitar tantos rostos, queria apenas justificar este
meu novo hábito de andar perscrutando as marquises, não é só medo de morrer
assassinado por um suicida, é que além do imenso transtorno eu acabaria
perdendo a beleza que deve ser o vôo dentro da noite e da cidade, quando tudo
vira um só, quadrado dentro do círculo, unidade e fragmento, poesia e bula de
remédio, quando nada mais importa. Olho para cima. Imagino as nuvens dançando
sobre todos esses tetos e agora que apareceu uma vaga neste elevador tenho que
entrar. Um rosto de bigodes fartos e olhos fundos me encara.
“Último andar,
por favor. Vou chover sobre Recife”
Jonatas Onofre
18/05/12
sábado, 9 de março de 2013
Sobre calendários e Almas
Um amigo me falou sobre um congestionamento de almas nas proximidades do sítio dos Marcos aqui em Igarassu... sim um grande transtorno para quem tencionava comemorar um dia tão importante como este 09 de março, distante quase quinhetos anos de um outro dia comum com o mesmo marulhar de ondas, com som de pássaros e de folhas sendo remexidas pelo vento... sim... aconteceu um 09 de março maravilhoso para um bando de heróis que pisou neste chão com ordens reais nos bolsos e muito desejo de posse (diga-se direito legítimo de cobiça) no peito e nos olhos. Dia de sol e fim de espera, dia de grandes começos e progresso, uma dia único na vida de vários povos. Uma encruzilhada da história, um capricho do tempo em conspiração com o calendário juliano, uma ruptura na diacronia sempiterna e organizada de nossos livros didáticos.
Hoje pra mim não é dia de festa... cada segundo desse dia deveria ser preenchido de versos para uma infinita elegia pelos milhares de corpos que o tempo devorou, oficial e sacrossantamente, a partir de um fatídico 09 de março. Não condenarei à mesma condição desterrada dos índios que não mais correm perto das águas aos distintos cidadãos que hoje dançam ciranda perto das águas ou tecem louvor à grande empresa lusitana... mas é uma pena que não lembrem...nem chorem... Dom Duarte e sua imagem severa e fascinante de soldado, administrador, déspota e herói épico de uma Nova Lusitânia que me perdoe a ousada investida destas letras mas calar dói muito mais que o desabafo...
Pois lembremos dos índios em seu congestionamento etéreo que eles devem ter lembrado de hoje também e vieram de onde quer que estivessem com seus corpos pintados de urucum, seus brincos e ossos e seu sangue de Uirapitang, suas feridas de mosquetes e bestas, suas chagas purulentas, seus pulmões podres de uma gripe sazonal inofensiva, seus olhos de indiferença perdidos num céu de araras e nuvens... Ah tantas almas voando enquanto muitos dançam e esquecem e desconhecem seus nomes. Comemoro hoje com marcos de pedra, lama e sangue o início de um genocídio... e espero que todas as almas organizem-se em fila indiana para seu passeio por aquelas bandas e voltem logo para seus lugares... afinal tem muita gente que deve estar louca pra fazer festa hoje e engrandecer grandes vultos de nossa história... neste grande dia de nossa vergonha... e pelo visto alma de índio só atrapalha numa hora dessas.
quinta-feira, 7 de março de 2013
Castrati
domingo, 27 de janeiro de 2013
Telejornal
Para Claudio Daniel
As antenas refulgem
nas pedras longe de Gaza
à luz de uma estrela
dessas de quinta grandeza.
Faz uma imagem limpa
em 29 polegadas e é fácil
controlar o volume do sangue
com o controle remoto
mas nós sabemos
que este sol é uma farsa
e que as parabólicas
devoram cadáveres
e escondem os ossos sob a areia.
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