segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Poema de quando vi um menino na rua II

Dorme.
um dormir claro,
como dormem as coisas
e nelas um relógio avaro.

Dorme.
o sol suspende-lhe
o meio-dia reto
sobre os ossos
e paira como abutre
velando a caça.

Dorme.
fechado em caroço,
exalando a ruína
na tarde da cidade.

Dorme.
incrusta-se
no branco de meus olhos
ignorando
meu espanto

e o silêncio do poema
apurando-se em sua sombra.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Tumbeiros

I
As horas se dissolverão
depois da linha do equador.
Num desvão soturno
olhos velam a espera.

II
A carne cala o corte.
Tantas mãos afagando
navalhas, no porão,
antes da âncora e do archote.

III
Indiferente ao traçado
de paralelos e meridianos
sobre a carta. O corpo singra
e sonha o dia da cova exata.

IV
Acender-se dói.
E eles com a treva costurada
ao corpo tendo que descoser-se
ao sol cru do porto.

Poema de quando vi um menino na rua I

Seu sono,
lâmina em meus olhos,
Derivando

na imundície da calçada

e ele
sendo apenas sombra apartada

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Aos Companheiros de Ofĩcio

"O poema brota do espanto" (Ferreira Gullar). Diante do homem o retábulo da vida, a tela barroca dos instantes e o vazio. Como nos ensinou o grande poeta: deixemos em paz nossa cidade, suas ruelas, seu casario, sua gente, deixemos no torpor das horas o corpo que se adensa, a vontade desatinada, a música de cada dia na fábrica do cotidiano, deixemos os homens e as crianças girando nestas rotas de sempre, nos trajetos corriqueiros, na fugacidade dos passos sobre as pedras, esqueçamos o rio, a ponte e toda água que transcenda as margens ,deixemos o sentimento, o incansável sentimento do mundo e nossas mãos rotas...
cala-te
e procura neste silêncio a eloquência do infinito, revisitando a memória, perscruta toda fuga, prova toda loucura, alcança o impensável, instaura o intangível, transgride o sacro e brando, então, quando as fronteiras tiverem ruído e alargados os horizontes, abre teus olhos e afia tua voz, pois terás diante de ti o retábulo da vida, a tela barroca dos instantes e o vazio, e sentirás que a poesia é da busca, não importando se encontrarás no fim (mesmo se houvesse um fim) aquilo que não se limita, alcança, abraça, que nossas tão poucas duas mãos não afagam mas como algo dentro de nós, lá onde não se divisa carne, osso e matéria etérea, no cerne, no caroço do corpo reside e prova o que fica. Para que serve o amor? a amizade? a poesia? me faço tais perguntas como um dia fez um grande poeta, e como ele não as respondo, sei do quanto é inútil a certeza nessas horas, sei apenas o não saber do fim, mesmo assim te proponho a procura: uma das faces da poesia. um dos sentidos da vida. e a razão de nosso ofício.
"Do espanto nasce o poema" (Ferreira Gullar)
05/11/2011 em Igarassu

domingo, 2 de outubro de 2011

Luzia II

O vinho profuso das horas
apura-se
de tuas pupilas
e todos os sóis
acesos em tua carne

sideram-me

até o cerne dos ossos

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Ao ouvir / voar / velejar (n)uma Barcarola


A melodia adensa-me nas coisas e na cena, sentir a música é muito mais que ouvir é um deixar-se devorar pelo som, é um ser- som... e os acordes, as escalas, e as vozes povoando o vazio, e o dedilhado nas casas da viola, as cifras fulgindo verdes, rubras, douradas do braço dos violões, das teclas cromáticas do cravo, do saltério que repousa no colo de acalantos, das cordas pendentes dos seios da pastora casta. O quarteto vocal derrama-se em dissonâncias, e um sudoeste vadio arrasta ora para longe, ora para perto a cantiga flutuando nas águas claras do Velho Chico. A sereia despiu-se mais, o rio se fez mais veloz, a melodia tornando-se árvore e sombra sobre a barcarola e os corpos delgados dos trovadores enrolando-se, rolando numa ciranda, fundindo-se em carne e nervo, incendiando-se com o diabolo in musica, tão longe agora o patíbulo e as chamas e o Santo Ofício. Ieronimus Bosch e Bach confabulam ao fundo numa chuva de partituras, telas pincéis e trompas inflamadas... tão instantânea é esta cena construindo-se, como este texto ensandecido, como este ouvinte preso ao feitiço daquilo que lhe pedra no peito e queima nas mãos... e os dedos já me pedem sons... e agora deixai-me pegar meu violão, que para nada serve o dizer nestas horas embriagadas:

"Noite longe que ficou em mim
quero levar. ( Geraldo Azevedo / Carlos Fernando )"

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Observação dos pássaros

foto( 2010): Jonatas Onofre

Recife, Av. Guararapes, Edf. Almare (terraço)

A Neuza, que também os fotografou

I

Revoando


do ocaso

horas


ensurdecendo


relógios

num chilro sagrado e à deriva

miramos


o sol, mais densa das aves, que

vazando

o teto desta cidade

suspende,

ainda,


no mais alvo, exato,

dentre as cores,

seus: ovo

e

canto

II

De todas

as estrelas insones indóceis

o vôo

Impassíveis


ante


a lua incubando-se

grande mãe

ao ninho de trevas

silentes

Recife (Almare) 22/06/2011

segunda-feira, 21 de março de 2011

Outros olhares sobre Teresa

teu centro:
tão externo,
à flor,
à vista
quanto a pele que veste o concreto de teu corpo

teu dentro:
tão fora,
ao avesso,
aberto
que és violentada por todos os foras

quarta-feira, 2 de março de 2011

Poéticas da Alvorada


I

Produzir a manhã
em cristal exato

que condense
clareza e consciência,

percorrendo-a,
ir mais, além de sua essência

II

Tirar palavras do nada,
de uma presença vazia,
é menos que recortá-las,
manuseá-las frias
e domá-las, possuí-las,
violar e esquentar suas entranhas pias

III

Povoar de palavras necessárias
o verso, o poema, a poesia
povoar e anular
neles todo excesso e segredo,
toda brasa,
toda fuga, todo vôo
que não este,
sobressalto,
pássaro sem asa,
pedra no caminho

IV

Cada dia meu
é de se fabricar coisas,
elaborar, traçar linhas,
entretecer amanhãs,
fundir palavras em palavra,
lutas vãs,
tantas dentro de minhas horas
de suor e fazer
nessa oficina
onde espero
a luz higiênica de um sol
para queimar a mão suja
antes do escrever