As sombras nunca deixam de ser irrequietas, mentindo enxames de
criaturas nas vielas sujas desta parte mais baixa da cidade. Estamos aqui desde
o pôr-do-sol, os prédios maiores ainda refletiam as últimas réstias, alguns
automóveis atravessavam a avenida e os poucos transeuntes pareciam deslizar na
calçada, com a pressa natural dos alvos fáceis, quando subíamos pelas escadas
de emergência.
*
“Espero que hoje meu braço não fique dormente, não quero errar de
novo” eu falei tentando manter o cigarro entre os dentes. “Você é um covarde” o
outro respondeu e escarrou, fechando os olhos ao olhar para baixo. Sinto a ofensa, acho graça de sua
contraditória demonstração de fraqueza, mas é melhor não dizer nada.
Disseram-me para não criar problemas com ele. Poderia ser meu último ato sobre
a terra. Não quero pagar pra ver.
*
Olho a lua, o sol não deixou vestígios.
*
Foi fácil encontrar o local demarcado. “Aqui estamos completamente
cobertos”, me achei um completo idiota depois de dizer algo tão óbvio. Ele me
olhava com desprezo, muito me irritava o ar de superioridade, os modos
mecânicos na montagem dos equipamentos, a tranquilidade ao dizer “Nunca estamos
acima dos riscos, Nem mesmo aqui. Vigiar. É só o que precisamos fazer.” Eu
precisava me calar.
*
Era uma rua de residências simples. Casas térreas, alguns poucos
prédios de poucos andares. Do nosso esconderijo podíamos ver os locais onde
antes as pessoas caminhavam. Um silêncio sem cães me perturbava.
*
“Não vai acontecer nada.”
“É o que você quer.”
“Estou apenas falando algo bem previsível... A última vez que
usamos essas coisas foi há dois meses.”
“E você ainda conseguiu errar. Eu tive que resolver o problema.”
“Já falei que meu braço fica dormente quando passo muito tempo
parado numa posição”
“Não sei por que te colocaram nisso.”
“Estou aqui porque sei esperar.”
“Se soubesse estaria calado. Nenhuma espera pede alarido.”
*
Quando eu era criança acompanhava meu pai em suas caçadas, ainda
havia floretas de verdade e animais em abundância, eles ainda podiam ser
exterminados sem grandes remorsos. Foi como ver de novo o bicho saltando da
moita. Um menino pula a janela de uma das casas, corre para o meio da praça,
para o balanço solitário do parque. Assim como meu pai fazia com lebres e
esquilos, tive que coloca-lo na mira vermelha de meu rifle. Não tive escolha.
*
“Atire!”
“Ele parece com meu filho...”
“Acabe logo com isso.
Cumpra a ordem.”
“Meu Deus! Não posso matar uma criança.”
*
Ele me acerta um chute no rosto. Meu rifle escorrega para longe.
Sinto o sangue jorrar de meu nariz numa torrente morna.
*
“É assim que se faz. Seu covarde.”
*
Tomou meu lugar na borda. Deitado posicionava o rifle na altura
exata, um olho fechado, o outro preparando o tiro, as mãos sem o menor sinal de
tremor.
*
O menino livre no balanço soltando ao vento gargalhadas girando
lento e leve olhando as nuvens as constelações as coisas menos sombrias na
grande noite da cidade.
*
O menino brinca diante de meus olhos atônitos.
*
O menino oferece a testa à mira deste homem que, concentrado na
caça, me ignora.
*
Súbito! Dois tiros.
*
Leva as mãos à garganta de onde está se esvaindo. Agoniza. Há
espanto em seus olhos? Parece não saber o que se passa.
*
Estou com medo. Não queria ter errado o tiro. Ele nunca foi meu
parceiro. Estávamos apenas vigiando o mesmo perímetro. Também nunca gostei
dele, mas vendo-o envolto em tanto sangue, gemendo cada vez mais fraco, não
consigo engolir o arrependimento. Deveria tê-lo acertado entre os olhos. O tiro
que ele deu sumiu no céu negro no exato instante em que minha bala passava
entre suas cordas vocais. A dor fez seu braço apontar a arma para o olho glauco
da lua. Depois ele escorregou lentamente até meus pés onde agora se asfixiava
em sangue. Por que não enfio logo uma bala na cabeça desse infeliz?
*
Lá embaixo o menino continua no balanço. Não há mais homens
apontando rifles para seu rosto.
*
Penso em meu filho. Será que ele seria tão estúpido como essa
criança a ponto de continuar brincando no parque depois de ouvir dois tiros? A
pistola em minhas mãos pesa um pouco mais que o de costume. Não vou coloca-la
de volta no bolso onde estava escondida. Também não vou encostar seu cano curto
e frio em minha têmpora. Se não fui homem o suficiente para abreviar o
sofrimento deste miserável que manteve olhos arrogantes até o último gemido,
não posso abreviar o meu. Sei que os outros virão saber o que houve aqui.
Chegarão logo. Não terei explicações. Chegarão com muitas armas. Descarregarão
todas em meu corpo. O menino continua lá. Eu poderia avisá-lo ou cumprir a
ordem. Ele me oferece sua testa límpida. Logo acima de sua cabeça há um outdoor
piscando:
DECRETO Nº777 DO CONSELHO: ESTÁ EXPRESSAMENTE PROIBIDA
A CIRCULAÇÃO DE PESSOAS APÓS O POR-DO-SOL. HOMENS ESTÃO A POSTOS
COM AUTORIZAÇÃO PARA ELIMINAR QUALQUER UM QUE TENTAR INFRINGIR
ESTA LEI.
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