“Meninos
correndo perigo/...” * primeiro verso de uma canção dos irmãos Borges enterrada
num LP de princípios dos anos 80. O típico estopim de nostalgias impossíveis
pela ausência de memória. Corremos perigo? Eu me interrogo dentro de um porão,
sob luzes ofuscantes, luzes-faca-de-ponta-inflamada.
Não queria
estar plácido: do jeito que estou - me envergonho da dúvida e do medo.
Não queria estar em minha pele: assim como
estou - me abandono em elucubrações de monge.
Não queria
estar aqui: na pose em que estou - me extravio nas obrigações e moralidades dos
lugares sagrados ou públicos.
Não queria
estar e estando perceber qualquer equilíbrio, qualquer chão onde deixar à
vontade os pés, qualquer sensação de abrigo, qualquer ilusão de amigo.
Quem
ousaria correr comigo? Correr é perigo? Dizer é perigo? Disse um velho anjo
entortado desde a fundação dos céticos pelo peso de volumes e brochuras
brochantes: que é perigo sim –dizer – e mais: é divino. Maravilhoso, divino,
maravilha, diva, deva, dívida. Dizer o discurso sem curso-correnteza (sem
análise de conversação – alô, hello, até mais ver –), dizer o poema sem
gesticulações de missa do galo, dizer a palavra sem a palavra ser menos
precária que nosso medo de errá-la, engasgá-la, sufoca-la entre brônquios e vértebras
várias, dizer o indizível na ausência das patas peludas do abecedário, dizer o
perigo mirando seus olhos de poraquê com água até as têmporas, dizer e dizer
até não sobrar um verbete sequer sobre o campo do massacre. Alguém ainda quer dizer?
Eu não
imploro violência eu a exijo como incontornável, como única chuva de motosserras
nos piqueniques dominicais e superlotados de bons-mocinhos salvadores da
desumanidade, como única dose letal para a paciência e os bons costumes. O
conhecimento do verso e do ritmo deveria nos adentrar com a fúria de uma
falange, com a música metal-blindagem de um tanque, com os rumores-tonelada de
um porta-aviões.
Eu não
sugeri violência: não se iluda meu bom moço. Eu não sugeri violência: Eu a empunho
com todas as lâminas e garrafais primeiras páginas de qualquer poema. Grito na
praça é rito e trapaça? – você me interpela e já dispara: intervenção barata
inseticida contraponto (morrem formiga e cigarra) e a multidão não perde a hora
do metrô – então vamos: Werneck esmagamentos, furtos, estupros por Santa Luzia
/ Joana Bezerra – Central. E continuas tua preleção: Grito no beco é ranço de boteco,
é desarranjo e lindo – adjetivo famigerado e desultrapassado em banho maria – Sacramentas,
por fim, em pudicícia de Castrati: grito no grito dos silenciados é sangue no
olho, é coisa de estouro desbaratado.
Aí sendo
assim eu intimo a vós e vós todos:
Riam de
minha fome e sede. Riam do absurdo e das sementes de fúria debaixo de minha
língua. Riam do grito e do riso parcamente mastigado pela timidez. Riam das
garrafas e de suas mensagens fadadas ao movimento impiedoso das ondas. Riam de
vocês mesmos quando não encontrarem mais graças em minhas maneiras. Riam dos
gramáticos e dos linguistas que riem dos poetas e dos masoquistas (e os sabem
elementos de um conjunto comum). Riam de suas próprias vidas de merda e depois
de suas mortes de merda e dos seus descendentes que nunca estarão preocupados
de lembrar o que vocês fizeram na hora de dormir. Riam enquanto tiverem dentes
e depois dentaduras e depois uma caverna escura cheia de lapsos e fiapos de
fruta podre.
Enquanto isso
deixa: Eu seguindo por aí como tô aprendendo – ligando pra tu assim pra parir
textos assim e só – tenho mais o que não fazer. E brindemos: Saúde aos hipócritas
e aos passistas da avenida paulista e aos macacos do circo transamérica e aos
dementes do Alcides Codeceira e aos beduínos do Saara e aos “meninos cabelos de
mel/ deixar os abrigos pra trás/ brincar de correr e cair/ aprender.” * Há
perigo? Haverá? Pois eu arrisco, Deveras.
*da música “Pros meninos” dos
irmãos Borges nas vozes de Milton Nascimento.
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