Estou morrendo. Transponho uma porta,
rastejo em minha própria hemorragia. Um corredor de chão rubro se espraia de
mim. Agora, deitado, vendo o líquido descer rumo ao fim das paredes, comprovo o
que sempre suspeitei quando andava descalço por aqui, o piso da casa está
desnivelado. Pena que não me resta tempo para conserta-lo. Nunca mais.
Levantando-me. Seguro as paredes como um lagarto, sinto a frieza dos tijolos em
minha barriga, a vista é turva, sombras enlaçadas nos cílios, mal diviso meus
sapatos obscuros, meus passos. Tenho à frente este corredor sem fundo,
abrindo-se num túnel apagado, caverna dentro da casa, não me lembrava de ser
tão longo o trajeto daquele quarto ali atrás, de onde saí a custo, até a porta
da rua, posso crer que ela me aguarda logo à frente, escondida no vazio, minha
salvação. Quase cadáver, meu corpo alquebrado. Desenhos de sangue. Para quê
pintei essas paredes no último natal? O corredor era branco. Agora há gravuras
encarnadas, havia outras, o sangue pouco a pouco as decalcou como faziam as crianças,
ou são outras figuras, animais em transe, estranhas formas se contorcendo? O
corredor é uma tela viva, fervilhando de bichos malignos, maldições de meus
olhos? Delírios? A morte se aproximando de mim com seu séquito? Chega-me novamente a visão daqueles olhos.
Quando os mirei soube que a hora do acerto de contas havia chegado. Não
trocamos palavra. Ela sabia que terminaria assim. Porque não me deixou ir
embora? Porque não largou a maldita arma? Mirava meu coração e eu tremia. Eu
não sabia que terminaria assim. Por isso não sabia como explicar. Ela nunca
quis entender. Há orifícios em meu peito, e um líquido quente encharcando minha
camisa vermelha, outrora branca, há marcas de unha em meu pescoço, em meu
rosto, há seu perfume no meu corpo. Ela ainda quis ser minha. Nua e louca. Eu
queria mata-la. Rolamos pelo chão do quarto, envoltos no silêncio, só nossa
respiração ofegante rasgava aquele véu finíssimo. Tentamos nos estrangular, em
nossas unhas, mesmo nas minhas, tão curtas, ficaram resquícios de carne. Ela
estava mais forte do que eu, movida pela fúria, pelo desejo de me ver sangrar
até a morte. A arma já descarregada: uma bala estilhaçara o abajur sobre a
cômoda, outra se fincara na madeira atrás do espelho fazendo chover sobre nós
cacos de vidro, uma terceira alojou-se no meu ombro esquerdo, outras duas
formaram quase um mesmo buraco logo abaixo do bolso direito de minha camisa e a
última escapara pela janela. Eu queria viver. Sem balas, mas ainda não
satisfeita ela me dominara, estava sobre mim, me sufocava. Meus olhos
procuravam uma defesa. No chão daquele quarto os pedaços do abajur e os cacos
de vidro. Ela parecia cega, olhava para meu rosto, mas certamente via outra
cena, mais cruel. Seus olhos pareceram abrir mais quando gritou ao sentir o
primeiro golpe entre suas pernas. Senti em minha mão o calor do sangue dela.
Tentei ser rápido, continuei enfiando o caco de espelho, com toda força que
ainda me estava. O silêncio persistia, embora eu quase pudesse ouvir o som do
vidro rasgando sua carne, a maciez dos lábios. Não esboçou resistência.
Entregou-me seu corpo mais uma vez. Montei sobre ela. Eu te amo, e enfiava mais
o vidro. Eu te amo, ela respondia e parecia sorrir. Eu te amo, minhas forças
acabando sobre o corpo dela. Eu te amo, e as palavras dela saiam com sangue. Eu
te amo, minha mão já se perdia dentro daquele corpo. Eu te amo, era só um
gemido em surdina, Eu te amo, algo pulsava perto de meus dedos, Eu, algo deixou
de pulsar dentro dela, mas o sangue não cessava, se misturava com o meu. Fiquei
algum tempo deitado ao seu lado, como fazia desde a lua-de-mel, há tantos anos
atrás. Como eram belos os seus cabelos, como a dor fizera de seu rosto um
retrato medonho. Não fechei seus olhos, permaneciam, lindos. Beijei uma última
vez aquela boca, senti o gosto salobro, coagulado. Transpus uma porta, rastejei
em minha propria hemorragia. Estou aqui, pintando com meu sangue as paredes do
meu lar, preciso chegar à porta, preciso fugir antes que cheguem, preciso. Já
posso ver a porta, mas é muito tarde. Caio aos pés da madeira. A dor dilacera
minhas entranhas, me resta pouco sangue, pouco ar. Fecho os olhos e já posso
ouvir lá fora as risadas inocentes de nossos filhos voltando da escola.
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