quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Bodas



Estou morrendo. Transponho uma porta, rastejo em minha própria hemorragia. Um corredor de chão rubro se espraia de mim. Agora, deitado, vendo o líquido descer rumo ao fim das paredes, comprovo o que sempre suspeitei quando andava descalço por aqui, o piso da casa está desnivelado. Pena que não me resta tempo para conserta-lo. Nunca mais. Levantando-me. Seguro as paredes como um lagarto, sinto a frieza dos tijolos em minha barriga, a vista é turva, sombras enlaçadas nos cílios, mal diviso meus sapatos obscuros, meus passos. Tenho à frente este corredor sem fundo, abrindo-se num túnel apagado, caverna dentro da casa, não me lembrava de ser tão longo o trajeto daquele quarto ali atrás, de onde saí a custo, até a porta da rua, posso crer que ela me aguarda logo à frente, escondida no vazio, minha salvação. Quase cadáver, meu corpo alquebrado. Desenhos de sangue. Para quê pintei essas paredes no último natal? O corredor era branco. Agora há gravuras encarnadas, havia outras, o sangue pouco a pouco as decalcou como faziam as crianças, ou são outras figuras, animais em transe, estranhas formas se contorcendo? O corredor é uma tela viva, fervilhando de bichos malignos, maldições de meus olhos? Delírios? A morte se aproximando de mim com seu séquito?  Chega-me novamente a visão daqueles olhos. Quando os mirei soube que a hora do acerto de contas havia chegado. Não trocamos palavra. Ela sabia que terminaria assim. Porque não me deixou ir embora? Porque não largou a maldita arma? Mirava meu coração e eu tremia. Eu não sabia que terminaria assim. Por isso não sabia como explicar. Ela nunca quis entender. Há orifícios em meu peito, e um líquido quente encharcando minha camisa vermelha, outrora branca, há marcas de unha em meu pescoço, em meu rosto, há seu perfume no meu corpo. Ela ainda quis ser minha. Nua e louca. Eu queria mata-la. Rolamos pelo chão do quarto, envoltos no silêncio, só nossa respiração ofegante rasgava aquele véu finíssimo. Tentamos nos estrangular, em nossas unhas, mesmo nas minhas, tão curtas, ficaram resquícios de carne. Ela estava mais forte do que eu, movida pela fúria, pelo desejo de me ver sangrar até a morte. A arma já descarregada: uma bala estilhaçara o abajur sobre a cômoda, outra se fincara na madeira atrás do espelho fazendo chover sobre nós cacos de vidro, uma terceira alojou-se no meu ombro esquerdo, outras duas formaram quase um mesmo buraco logo abaixo do bolso direito de minha camisa e a última escapara pela janela. Eu queria viver. Sem balas, mas ainda não satisfeita ela me dominara, estava sobre mim, me sufocava. Meus olhos procuravam uma defesa. No chão daquele quarto os pedaços do abajur e os cacos de vidro. Ela parecia cega, olhava para meu rosto, mas certamente via outra cena, mais cruel. Seus olhos pareceram abrir mais quando gritou ao sentir o primeiro golpe entre suas pernas. Senti em minha mão o calor do sangue dela. Tentei ser rápido, continuei enfiando o caco de espelho, com toda força que ainda me estava. O silêncio persistia, embora eu quase pudesse ouvir o som do vidro rasgando sua carne, a maciez dos lábios. Não esboçou resistência. Entregou-me seu corpo mais uma vez. Montei sobre ela. Eu te amo, e enfiava mais o vidro. Eu te amo, ela respondia e parecia sorrir. Eu te amo, minhas forças acabando sobre o corpo dela. Eu te amo, e as palavras dela saiam com sangue. Eu te amo, minha mão já se perdia dentro daquele corpo. Eu te amo, era só um gemido em surdina, Eu te amo, algo pulsava perto de meus dedos, Eu, algo deixou de pulsar dentro dela, mas o sangue não cessava, se misturava com o meu. Fiquei algum tempo deitado ao seu lado, como fazia desde a lua-de-mel, há tantos anos atrás. Como eram belos os seus cabelos, como a dor fizera de seu rosto um retrato medonho. Não fechei seus olhos, permaneciam, lindos. Beijei uma última vez aquela boca, senti o gosto salobro, coagulado. Transpus uma porta, rastejei em minha propria hemorragia. Estou aqui, pintando com meu sangue as paredes do meu lar, preciso chegar à porta, preciso fugir antes que cheguem, preciso. Já posso ver a porta, mas é muito tarde. Caio aos pés da madeira. A dor dilacera minhas entranhas, me resta pouco sangue, pouco ar. Fecho os olhos e já posso ouvir lá fora as risadas inocentes de nossos filhos voltando da escola.

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