sábado, 4 de junho de 2016

Considerações escabrosas sobre topografia, fitas K7 e doenças crônicas do fígado ou notas de crítica amadora sobre o suicídio iminente de Maui Mallard (vulgo Cold Shadow) ou do rosto sob vários rostos e seus nomes.






I

Precisamos falar sobre o abismo. Deixo claro minha preferência por ambiguidades ao abrir meu texto com essa frase. É (também) sobre inexatidões discursivas, portas falsas e esquivas retóricas que pretendo discorrer aqui.  A princípio preciso (lançando mão de toda redundância que estiver ao meu alcance) dizer que as cinco primeiras palavras desse exercício de extravio implicam na abertura de uma bifurcação medonha: A - Ter o abismo em toda sua dimensão franqueada à queda livre como objeto central de uma conversa séria. B - Ter essa conversa séria sobre ou à beira da bocarra absolutamente falsa desse abismo. Não falo como alguém que escapou daquela escarpa, como um corpo que galgou todos os andares do abisso de volta à luz de um terreno livre de rarefações, até a presente data ninguém conseguiu tal maravilha ou desgraça final. Observaremos de perto o funcionamento do sorvedouro e se o  leitor estiver intrigado com essas referências tão insistentes feitas a um relevo possível para uma paisagem passível de esquecimento ou desprezo posso reafirmar meu gosto pelo ângulo insignificante e depreciado das coisas, pelo monturo e pela face patética (quase sempre a custo) escondida atrás de tudo (desde os gestos da feiura no escuro de um lugar-comum à imodesta aparição de algo belo sob as fluorescências de alguma novidade – aqui entrariam as únicas gargalhadas desse traçado tragicômico, um instante de alívio antes de começarem as crises de choro -) e assumir, muito mais que confessar, meu fascínio pela caligrafia tipo B inaugurada pelos desastres que apresentarei nas próximas linhas. Falar do abismo é colar o rosto vincado de agonias no rosto cheio de poeira e ácaros do fracasso. Que ninguém se engane: nenhum fracasso pertence ao futuro. Repare nos detalhes daquilo que deu errado e será fácil perceber o aspecto de móvel apodrecendo que todo malogro tem ao cometer sua metástase (desde o despontar da ideia infalível: seja livro, seja canção, seja a invenção que for) dentro do mecanismo mesmo que indicava algum sucesso. O fracasso sempre estará “nos rondando como um leão. Pronto para nos (es)tragar” e se uso uma corruptela de São Pedro aqui não é para indicar algum aceno teológico, um pedido de socorro ao inefável. Estou sinalizando com uma metáfora alheia a imagem real de mais um braço a nos puxar para mais fundo: O fracasso e o abismo tão gêmeos siameses com o súcubo de juba e quatro patas pintado (para pavor dos fiéis) pelo apóstolo. O fracasso posicionado como espelho a multiplicar o abismo também escancara os infinitos caninos sem língua. O fracasso (mesmo que só por algumas horas) também será o abismo.
Meu pseudo-pensador-abismado de cabeceira chama-se Emerenciano Costa, que também atende se alguém gritar no meio do beco da fome noir em plena meia noite de contorcionismos etílicos: “Él bodegón!”. A figura do abismado precisa ser melhor explicada. Admito. Carecemos de estudos sérios no campo da psicanálise, da filosofia, da sociologia (porque não) para depois chegar a alguma crítica de arte sobre esse espectro inflamando pseudarte. Bom, assim seria mais correta a viagem, mas não dispomos de escalas tão bem marcadas para o trajeto. Terei que trabalhar com invenção e (quase) nenhum método para desvelar alguns (pouquíssimos) traços desse sujeito-sem-jeito. No meio desse reino de fossas secas em que estamos visivelmente desconcertados até o pomo de adão eu não procuro, nem de longe, fazer aqui qualquer movimento de ofensa. Costa bem o sabe, mas vocês não perdoem a escatologia. Talvez seja algo completamente extrínseco. Não me importa. “Falar é fácil, obrar é coragem” [isso minha vó materna, que nunca conheci, dizia em momentos de gravidade e com a devida tensão dramática que a frase exigia]Sei que é difícil para muitos perceber onde há algum mérito no que estou dizendo. Estou sim debochando em cima dos trapos de uma figura. Muito embora não esteja sequer “triscando” no rosto que trinca os dentes debaixo dos nomes que a pouco anunciei. O abismado desconhecendo fraternidades é o melhor amigo, não solta tua mão enquanto despenca solfejando: “Hello darkness, my old friend”. Pois bem, conhecendo o abismado vislumbramos o abismo. Talvez assim uma cratera fique mais aberta sob nossos pés e se estamos aqui na pretensão ingênua de desvendá-la, bem que podemos merecer um deslizamento para seu escuro sem chão. O abismado sempre estará pronto a nos conduzir para lá.
O espírito que anima a matéria de El bodegón tem um nome (em todos os sentidos que forem necessários), constrói uma obra e certamente preferirá qualquer apelido de demônio (inclusive há suspeitas de que El bodegón e Emerenciano Costa o sejam)  para ajuntar ao nome de cartório. Chama-se Ítalo Dantas e usa de malabarismos de realismo-trágico para continuar seus trabalho com sua editora independente La bodeguita. Foi a própria mamífera tão carinhosamente batizada com uma sentença diminutiva que deu à luz dois (poemas para matar demônios & corrente de bike no pescoço) dos três tomos da (informalmente batizada e nem por isso menos contundente) trilogia do abismo (o outro volume: “nome”, continua inédito). A importância desse “movimento de roda de bmx levantando poeira” ou mais diretamente essa rabiada (à espera de sua terceira jante) que o mancebo Ítalo desferiu no horizonte metafísico de nossa literatura contemporânea não pôde ainda ser (des)medida. Suas profecias ainda aguardarão muito tempo para serem devidamente mastigadas por alguma dentadura dupla de nossa época?
*
Toda profecia age no instante do atraso. Esqueceram de deixar isso claro para Maui Mallard.

II

Acho que é importante saber:
Segundo uma lenda de um povo nativo de uma ilha misteriosa em algum ponto de algum oceano, fizeram um sacrifício aos deuses atirando o corpo ainda vivo de Maui Mallard num vulcão. O corpo não morreu. Por mais difícil que seja acreditar no milagre operado por Maui sobre sua própria integridade física (Ninguém escapa do abismo... lembram?) talvez tudo seja verdade e o mesmo ser ou pedaço de memória acoplado no mito dos game maníacos consiga resgatar das tardes mais calorentas entre ruídos de péssima sintonia das televisões: pedaços de filmes, talk shows obscuros e outras maravilhas dos tempos em que a decrepitude terminava seus efeitos devastadores sobre a cultura da fita k7.  Convido para a travessia:


Comerciais de tv, ativismo ambiental, lambada, duplas teen e insinuações de nudez politicamente incorreta. Diálogos em dublagem padrão Herbert Richter e sonoplastia para realçar a tensão (ou o tesão) porque a maneira vaporwave de encarar o tempo – se o entendermos como a sucessão que dá sentido ao compasso – só existe para deixar mais vaga a informação /  a certeza. A ideia é, de fato, descer ao mais raso (e por isso mesmo) alcançar nosso ponto mais sincero: nossa memória repleta de referências patéticas, mas profundamente afetivas impossíveis de serem dissociadas de nossas pulsões mais profundas.  Daí a urgência em rebaixar os tons. Timbres sempre no subsolo, voz explicitamente alterada. O abismo é um lugar de tons obscuros, tons cada vez mais para baixo. Estamos unindo as pontas de duas trilhas. Se encontramos o abismo em Maui desde sua história fantástica ao sobreviver à queda em um vulcão, se apontamos para a indefinição proposital de sua obra, para o labirinto de suas reminiscências musicais e televisivas e a impossibilidade de determinar um sexo para a/o personagem Mallard, assim como não sabemos de que são feitos Costa e Bodegón, assim como tanto para esses dois como para aquele/aquela existe um rosto a vociferar por trás , se percebemos como bruma, ou vapor mesmo, se alguém preferir proposições mais diretamente militantes, o que de fato querem ser no poema do som, do sentido e da palavra: então estamos sim criando um pensamento, deveras tímido e confuso sobre a dimensão terrível do abismo – algo que poderia muito bem passar por novidade -  sua insistente mania de devastar o corpo e a mente (principalmente) a mente de seus criadores. E posso dar um exemplo desse feitiço revirando sobre a mão que o tece ao abrir as portas do segundo abismo de Mallard:


 vinhetas num inglês saturado de distorções e chiados, ataques de metais e madeiras, uma orquestra para abertura de um programa dominical, fausto silva, suas garotas e todo bolão de hipocrisia (daquela época ou muito mais de agora?) e funk melody,  um tiroteio e muitas perturbações. Aqui entraria um citação direta de versos do “corrente de bike no pescoço”, a intenção seria agravar o sentimento ambíguo, a vontade de rir ou de tomar cianureto, para que isso seja mais efetivo prefiro colocar o link direto do exemplar inteiro:


[relendo, acabo de reparar na menção à anatomia do apóstolo Pedro e faço aqui uma confissão: não usei o texto do apóstolo antes por causa dessa citação, queria mesmo falar de tentação e demônios e afins. O órgão excretor daquele  digníssimo senhor – até então, até agora - continuava intocável]  tainha, wine and lots of sex, cenas deletadas de qualquer pornô, alguém mijando e cuspindo na boca de uma metáfora. Pontos? Pontos de encontro ou de repulsão? O que eles querem desdizer com isso? Eu não estou aqui para responder e acho que vocês (como muito espertos que são) já devem ter percebido.

III

Há um apelido terrível: algo que poucas vezes deve ser pronunciado. Para todo e qualquer efeito nunca queira ser conhecido como eles : horses killers. A “figura [de Maui Mallard] almeja um tiro exato” na própria cabeça e em nossos tímpanos destreinados para tanto estampido:


E eu sei que Dantas fala de outra figura, de outro projétil. Acontece que não abrirei mão das correspondências que minha preguiça exigir. Nenhum respeito ao artista é a melhor lição que posso aprender com esses. Aqui outra bifurcação: doenças crônicas no fígado para mim e para Emerenciano, suicídio assistido, digo: ouvido via bandcamp para Maui Mallard. São os destinos: maktub. A cada obra o exercício da depreciação, o mergulho na vastidão desse lixão formoso: a memória de pouco mais de uma década. Crescemos aos trancos e abraçados com a promessa de não conhecer o fracasso. Fomos enganados. O tumor do abismo mais incômodo que um apêndice avariado. Só agora, com o atraso necessário, descobrimos que sabíamos a profecia. E a profecia não pertencia ao Bodegón, não pertence a Maui, nem a mim. A profecia sequer existe para além do abismo.
Minha tese está acorrentada ao calcanhar de quem manipula o ventríloquo Mallard (perdoe-me Camillo José) e sinaliza para a necessidade mais forte: matar-se. Matar-se a cada obra. Não esperar que os nativos da ilha te amarrem e joguem vulcão abaixo. Lançar-se. Estrangular-se assoviando como Spike Spiegel antes de fechar os olhos para abrir de novo experimentando os poderes de Cold Shadow. Rir das próprias chagas, fragilidades e incompetências. Virar algo mais etéreo que purê. Ser mais breve que um vapor. [funcionar como engrenagem sobre a noite] ser o vampiro e a discórdia.
&
 Minha antítese está aferrolhada no pulso de quem sopra nas narinas de Emerenciano e El bodegón: estar vivo e agressivo. Este é o tempo da violência sem amarras, da reação instantânea. Pedrada. Mentir: saber o que procurar entre escombros... muitas glandes mutiladas, estátuas de filhas de vênus só mamilos e esperas, obsessões progressivas, um samba fora dos padrões para ouvir antes do baque surdo no fundo da ausência. A certeza só das chacinas: assim se faz literatura, assim se faz boa música

para ninguém

IV


O texto: A - pode ser ignorado sem prejuízo dos links aqui apresentados. B -  é obscuramente um correr desorganizado de pensamentos em círculos. B II – nunca concêntricos.  C - o último? Elo? – para perder completamente qualquer ligação com

aqui

e



agora?




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