I
Precisamos falar sobre o abismo. Deixo claro
minha preferência por ambiguidades ao abrir meu texto com essa frase. É
(também) sobre inexatidões discursivas, portas falsas e esquivas retóricas que
pretendo discorrer aqui. A princípio
preciso (lançando mão de toda redundância que estiver ao meu alcance) dizer que
as cinco primeiras palavras desse exercício de extravio implicam na abertura de
uma bifurcação medonha: A - Ter o abismo em toda sua dimensão franqueada à
queda livre como objeto central de uma conversa séria. B - Ter essa conversa
séria sobre ou à beira da bocarra absolutamente falsa desse abismo. Não falo
como alguém que escapou daquela escarpa, como um corpo que galgou todos os
andares do abisso de volta à luz de um terreno livre de rarefações, até a
presente data ninguém conseguiu tal maravilha ou desgraça final. Observaremos
de perto o funcionamento do sorvedouro e se o leitor estiver intrigado com essas referências
tão insistentes feitas a um relevo possível para uma paisagem passível de
esquecimento ou desprezo posso reafirmar meu gosto pelo ângulo insignificante e
depreciado das coisas, pelo monturo e pela face patética (quase sempre a custo)
escondida atrás de tudo (desde os gestos da feiura no escuro de um lugar-comum
à imodesta aparição de algo belo sob as fluorescências de alguma novidade –
aqui entrariam as únicas gargalhadas desse traçado tragicômico, um instante de
alívio antes de começarem as crises de choro -) e assumir, muito mais que
confessar, meu fascínio pela caligrafia tipo B inaugurada pelos desastres que
apresentarei nas próximas linhas. Falar do abismo é colar o rosto vincado de
agonias no rosto cheio de poeira e ácaros do fracasso. Que ninguém se engane:
nenhum fracasso pertence ao futuro. Repare nos detalhes daquilo que deu errado e
será fácil perceber o aspecto de móvel apodrecendo que todo malogro tem ao
cometer sua metástase (desde o despontar da ideia infalível: seja livro, seja
canção, seja a invenção que for) dentro do mecanismo mesmo que indicava algum
sucesso. O fracasso sempre estará “nos rondando como um leão. Pronto para nos
(es)tragar” e se uso uma corruptela de São Pedro aqui não é para indicar algum
aceno teológico, um pedido de socorro ao inefável. Estou sinalizando com uma
metáfora alheia a imagem real de mais um braço a nos puxar para mais fundo: O
fracasso e o abismo tão gêmeos siameses com o súcubo de juba e quatro patas
pintado (para pavor dos fiéis) pelo apóstolo. O fracasso posicionado como
espelho a multiplicar o abismo também escancara os infinitos caninos sem língua.
O fracasso (mesmo que só por algumas horas) também será o abismo.
Meu pseudo-pensador-abismado de cabeceira
chama-se Emerenciano Costa, que também atende se alguém gritar no meio do beco
da fome noir em plena meia noite de contorcionismos etílicos: “Él bodegón!”. A
figura do abismado precisa ser melhor explicada. Admito. Carecemos de estudos
sérios no campo da psicanálise, da filosofia, da sociologia (porque não) para
depois chegar a alguma crítica de arte sobre esse espectro inflamando pseudarte.
Bom, assim seria mais correta a viagem, mas não dispomos de escalas tão bem
marcadas para o trajeto. Terei que trabalhar com invenção e (quase) nenhum
método para desvelar alguns (pouquíssimos) traços desse sujeito-sem-jeito. No
meio desse reino de fossas secas em que estamos visivelmente desconcertados até
o pomo de adão eu não procuro, nem de longe, fazer aqui qualquer movimento de
ofensa. Costa bem o sabe, mas vocês não perdoem a escatologia. Talvez seja algo
completamente extrínseco. Não me importa. “Falar é fácil, obrar é coragem”
[isso minha vó materna, que nunca conheci, dizia em momentos de gravidade e com
a devida tensão dramática que a frase exigia]Sei que é difícil para muitos
perceber onde há algum mérito no que estou dizendo. Estou sim debochando em
cima dos trapos de uma figura. Muito embora não esteja sequer “triscando” no rosto
que trinca os dentes debaixo dos nomes que a pouco anunciei. O abismado
desconhecendo fraternidades é o melhor amigo, não solta tua mão enquanto
despenca solfejando: “Hello darkness, my old friend”. Pois bem, conhecendo o
abismado vislumbramos o abismo. Talvez assim uma cratera fique mais aberta sob
nossos pés e se estamos aqui na pretensão ingênua de desvendá-la, bem que
podemos merecer um deslizamento para seu escuro sem chão. O abismado sempre
estará pronto a nos conduzir para lá.
O espírito que anima a matéria de El bodegón
tem um nome (em todos os sentidos que forem necessários), constrói uma obra e
certamente preferirá qualquer apelido de demônio (inclusive há suspeitas de que
El bodegón e Emerenciano Costa o sejam) para
ajuntar ao nome de cartório. Chama-se Ítalo Dantas e usa de malabarismos de
realismo-trágico para continuar seus trabalho com sua editora independente La
bodeguita. Foi a própria mamífera tão carinhosamente batizada com uma sentença
diminutiva que deu à luz dois (poemas para matar demônios & corrente de
bike no pescoço) dos três tomos da (informalmente batizada e nem por isso menos
contundente) trilogia do abismo (o outro volume: “nome”, continua inédito). A
importância desse “movimento de roda de bmx levantando poeira” ou mais diretamente
essa rabiada (à espera de sua terceira jante) que o mancebo Ítalo desferiu no
horizonte metafísico de nossa literatura contemporânea não pôde ainda ser (des)medida.
Suas profecias ainda aguardarão muito tempo para serem devidamente mastigadas
por alguma dentadura dupla de nossa época?
*
Toda profecia age no instante do atraso. Esqueceram
de deixar isso claro para Maui Mallard.
II
Acho que é importante saber:
Segundo uma lenda de um povo nativo de uma
ilha misteriosa em algum ponto de algum oceano, fizeram um sacrifício aos deuses
atirando o corpo ainda vivo de Maui Mallard num vulcão. O corpo não morreu. Por
mais difícil que seja acreditar no milagre operado por Maui sobre sua própria
integridade física (Ninguém escapa do abismo... lembram?) talvez tudo seja
verdade e o mesmo ser ou pedaço de memória acoplado no mito dos game maníacos
consiga resgatar das tardes mais calorentas entre ruídos de péssima sintonia
das televisões: pedaços de filmes, talk shows obscuros e outras maravilhas dos
tempos em que a decrepitude terminava seus efeitos devastadores sobre a cultura
da fita k7. Convido para a travessia:
Comerciais de tv, ativismo ambiental, lambada,
duplas teen e insinuações de nudez politicamente incorreta. Diálogos em
dublagem padrão Herbert Richter e sonoplastia para realçar a tensão (ou o
tesão) porque a maneira vaporwave de encarar o tempo – se o entendermos como a sucessão
que dá sentido ao compasso – só existe para deixar mais vaga a informação
/ a certeza. A ideia é, de fato, descer
ao mais raso (e por isso mesmo) alcançar nosso ponto mais sincero: nossa
memória repleta de referências patéticas, mas profundamente afetivas
impossíveis de serem dissociadas de nossas pulsões mais profundas. Daí a urgência em rebaixar os tons. Timbres
sempre no subsolo, voz explicitamente alterada. O abismo é um lugar de tons
obscuros, tons cada vez mais para baixo. Estamos unindo as pontas de duas
trilhas. Se encontramos o abismo em Maui desde sua história fantástica ao
sobreviver à queda em um vulcão, se apontamos para a indefinição proposital de
sua obra, para o labirinto de suas reminiscências musicais e televisivas e a
impossibilidade de determinar um sexo para a/o personagem Mallard, assim como
não sabemos de que são feitos Costa e Bodegón, assim como tanto para esses dois
como para aquele/aquela existe um rosto a vociferar por trás , se percebemos
como bruma, ou vapor mesmo, se alguém preferir proposições mais diretamente
militantes, o que de fato querem ser no poema do som, do sentido e da palavra:
então estamos sim criando um pensamento, deveras tímido e confuso sobre a
dimensão terrível do abismo – algo que poderia muito bem passar por novidade
- sua insistente mania de devastar o
corpo e a mente (principalmente) a mente de seus criadores. E posso dar um
exemplo desse feitiço revirando sobre a mão que o tece ao abrir as portas do segundo
abismo de Mallard:
vinhetas
num inglês saturado de distorções e chiados, ataques de metais e madeiras, uma
orquestra para abertura de um programa dominical, fausto silva, suas garotas e
todo bolão de hipocrisia (daquela época ou muito mais de agora?) e funk melody,
um tiroteio e muitas perturbações. Aqui
entraria um citação direta de versos do “corrente de bike no pescoço”, a
intenção seria agravar o sentimento ambíguo, a vontade de rir ou de tomar
cianureto, para que isso seja mais efetivo prefiro colocar o link direto do
exemplar inteiro:
[relendo, acabo de reparar na menção à
anatomia do apóstolo Pedro e faço aqui uma confissão: não usei o texto do
apóstolo antes por causa dessa citação, queria mesmo falar de tentação e
demônios e afins. O órgão excretor daquele
digníssimo senhor – até então, até agora - continuava intocável] tainha, wine and lots of sex, cenas deletadas
de qualquer pornô, alguém mijando e cuspindo na boca de uma metáfora. Pontos?
Pontos de encontro ou de repulsão? O que eles querem desdizer com isso? Eu não
estou aqui para responder e acho que vocês (como muito espertos que são) já
devem ter percebido.
III
Há um apelido terrível: algo que poucas vezes
deve ser pronunciado. Para todo e qualquer efeito nunca queira ser conhecido
como eles : horses killers. A “figura [de Maui Mallard] almeja um tiro exato”
na própria cabeça e em nossos tímpanos destreinados para tanto estampido:
E eu sei que Dantas fala de outra figura, de
outro projétil. Acontece que não abrirei mão das correspondências que minha preguiça
exigir. Nenhum respeito ao artista é a melhor lição que posso aprender com
esses. Aqui outra bifurcação: doenças crônicas no fígado para mim e para
Emerenciano, suicídio assistido, digo: ouvido via bandcamp para Maui Mallard. São
os destinos: maktub. A cada obra o exercício da depreciação, o mergulho na
vastidão desse lixão formoso: a memória de pouco mais de uma década. Crescemos
aos trancos e abraçados com a promessa de não conhecer o fracasso. Fomos
enganados. O tumor do abismo mais incômodo que um apêndice avariado. Só agora, com
o atraso necessário, descobrimos que sabíamos a profecia. E a profecia não
pertencia ao Bodegón, não pertence a Maui, nem a mim. A profecia sequer existe
para além do abismo.
Minha tese está acorrentada ao calcanhar de
quem manipula o ventríloquo Mallard (perdoe-me Camillo José) e sinaliza para a
necessidade mais forte: matar-se. Matar-se a cada obra. Não esperar que os
nativos da ilha te amarrem e joguem vulcão abaixo. Lançar-se. Estrangular-se
assoviando como Spike Spiegel antes de fechar os olhos para abrir de novo
experimentando os poderes de Cold Shadow. Rir das próprias chagas, fragilidades
e incompetências. Virar algo mais etéreo que purê. Ser mais breve que um vapor.
[funcionar como engrenagem sobre a noite] ser o vampiro e a discórdia.
&
Minha
antítese está aferrolhada no pulso de quem sopra nas narinas de Emerenciano e El
bodegón: estar vivo e agressivo. Este é o tempo da violência sem amarras, da
reação instantânea. Pedrada. Mentir: saber o que procurar entre escombros... muitas
glandes mutiladas, estátuas de filhas de vênus só mamilos e esperas, obsessões
progressivas, um samba fora dos padrões para ouvir antes do baque surdo no
fundo da ausência. A certeza só das chacinas: assim se faz literatura, assim se
faz boa música
para ninguém
IV
O texto: A - pode ser ignorado sem prejuízo
dos links aqui apresentados. B - é obscuramente
um correr desorganizado de pensamentos em círculos. B II – nunca concêntricos. C - o último? Elo? – para perder completamente
qualquer ligação com
aqui
e
agora?
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