quarta-feira, 16 de julho de 2014

Há risco, a vera?


“Meninos correndo perigo/...” * primeiro verso de uma canção dos irmãos Borges enterrada num LP de princípios dos anos 80. O típico estopim de nostalgias impossíveis pela ausência de memória. Corremos perigo? Eu me interrogo dentro de um porão, sob luzes ofuscantes, luzes-faca-de-ponta-inflamada.

Não queria estar plácido: do jeito que estou - me envergonho da dúvida e do medo.

 Não queria estar em minha pele: assim como estou - me abandono em elucubrações de monge.

Não queria estar aqui: na pose em que estou - me extravio nas obrigações e moralidades dos lugares sagrados ou públicos.

Não queria estar e estando perceber qualquer equilíbrio, qualquer chão onde deixar à vontade os pés, qualquer sensação de abrigo, qualquer ilusão de amigo.

Quem ousaria correr comigo? Correr é perigo? Dizer é perigo? Disse um velho anjo entortado desde a fundação dos céticos pelo peso de volumes e brochuras brochantes: que é perigo sim –dizer – e mais: é divino. Maravilhoso, divino, maravilha, diva, deva, dívida. Dizer o discurso sem curso-correnteza (sem análise de conversação – alô, hello, até mais ver –), dizer o poema sem gesticulações de missa do galo, dizer a palavra sem a palavra ser menos precária que nosso medo de errá-la, engasgá-la, sufoca-la entre brônquios e vértebras várias, dizer o indizível na ausência das patas peludas do abecedário, dizer o perigo mirando seus olhos de poraquê com água até as têmporas, dizer e dizer até não sobrar um verbete sequer sobre o campo do massacre. Alguém ainda quer dizer?

Eu não imploro violência eu a exijo como incontornável, como única chuva de motosserras nos piqueniques dominicais e superlotados de bons-mocinhos salvadores da desumanidade, como única dose letal para a paciência e os bons costumes. O conhecimento do verso e do ritmo deveria nos adentrar com a fúria de uma falange, com a música metal-blindagem de um tanque, com os rumores-tonelada de um porta-aviões.

Eu não sugeri violência: não se iluda meu bom moço. Eu não sugeri violência: Eu a empunho com todas as lâminas e garrafais primeiras páginas de qualquer poema. Grito na praça é rito e trapaça? – você me interpela e já dispara: intervenção barata inseticida contraponto (morrem formiga e cigarra) e a multidão não perde a hora do metrô – então vamos: Werneck esmagamentos, furtos, estupros por Santa Luzia / Joana Bezerra – Central. E continuas tua preleção: Grito no beco é ranço de boteco, é desarranjo e lindo – adjetivo famigerado e desultrapassado em banho maria – Sacramentas, por fim, em pudicícia de Castrati: grito no grito dos silenciados é sangue no olho, é coisa de estouro desbaratado.

Aí sendo assim eu intimo a vós e vós todos:

Riam de minha fome e sede. Riam do absurdo e das sementes de fúria debaixo de minha língua. Riam do grito e do riso parcamente mastigado pela timidez. Riam das garrafas e de suas mensagens fadadas ao movimento impiedoso das ondas. Riam de vocês mesmos quando não encontrarem mais graças em minhas maneiras. Riam dos gramáticos e dos linguistas que riem dos poetas e dos masoquistas (e os sabem elementos de um conjunto comum). Riam de suas próprias vidas de merda e depois de suas mortes de merda e dos seus descendentes que nunca estarão preocupados de lembrar o que vocês fizeram na hora de dormir. Riam enquanto tiverem dentes e depois dentaduras e depois uma caverna escura cheia de lapsos e fiapos de fruta podre.

Enquanto isso deixa: Eu seguindo por aí como tô aprendendo – ligando pra tu assim pra parir textos assim e só – tenho mais o que não fazer. E brindemos: Saúde aos hipócritas e aos passistas da avenida paulista e aos macacos do circo transamérica e aos dementes do Alcides Codeceira e aos beduínos do Saara e aos “meninos cabelos de mel/ deixar os abrigos pra trás/ brincar de correr e cair/ aprender.” * Há perigo? Haverá? Pois eu arrisco, Deveras.

 

*da música “Pros meninos” dos irmãos Borges nas vozes de Milton Nascimento.