Vivo numa cidade demarcada. Marcos de pedra, limites, cercas e muros. Vivo numa cidade sitiada pela posse. "Na minha cidade a gente aprende a morrer só", como diz Márcio Borges e Milton, e aprende a esquecer. Mesmo hoje depois de tanto "avanço", nestes tempos de tanta reflexão políticamente correta, ainda cultuam certos "vultos" (e são vultos, sombras mesmo) de nossa história, hérois que se notabilizaram pela crueldade e cobiça, pelo desejo de poder e prazer... hoje merecem estátuas e status de épicas proporções. Meu 9 de março tem um significado bem diverso do que estou vendo por essas bandas. Não consigo pensar em festa, em aplaudir uma "civilização" que se firmou sobre o sangue de outra, "civilização" que se apossou em nome de uma "fé" de um chão que não tinha dono porque os que viviam aqui sentiam-se pertencidos à natureza e não o desastroso contrário que os europeus trouxeram em suas naus... como posso comemorar a devastação da mata atlântica, a poluição dos rios, a matança e contrabando de animais, a dizimação de tribos, seja pela espada, seja pelas doenças que mataram uma população que nunca precisara antes se tratar de um simples resfriado... Somos todos resultado desses desencontros e encruzilhadas históricos, eu sei. Somos cria desse tempo, herdeiros também... isso não nos obriga a rituais tão contraditórios, a cerimoniais tão pios para celebrar crimes hediondos. Creio que a palavra genocídio não será lembrada, nem pronunciada hoje por alguma ilustre figura que em solos de Igarassu for tecer elogios à Duarte Coelho, soldado nas índias, colonizador no Brasil, mãos de ferro em Pernambuco... ninguém perceberá o lapso (afinal há coisas muito belas para se falar... feitos heróicos, benfeitorias, desenvolvimentos...) ninguém fará a menor questão por lembranças de luto e dor (afinal como já me disse certa vez alguém: "eles já estão mortos mesmo..."). Cosme e Damião foram médicos cristão martirizados por terem dedicado a vida aos pobres, séculos depois tornam-se patrocinadores de batalhas sangrentas... espero que o sono dos justos os tenha impedido de ver tamanha agressão à suas histórias de caridade e entrega... quanto a mim continuo sem conseguir engolir esse amargo travo que a história guardou... outros sequer tem conhecimento e muitos que tem procuram esquecer, varrer pra debaixo do tapete... faço agora o que fiz ano passado e farei enquanto minhas mãos e meus olhos permitirem: grito com palavras na tela como gritaram os índios (segundo nossa "linda" lenda) seu grito-escarro Igarassu, não um grito de espanto (eles já conviviam com navios a pelo menos trinta anos) mas um alarme, um aviso, presságio de tragédia, não havia festa no som entre as folhas da mata, o grito atravessou folhagens para avisar que a morte chegava... Igarassu: um marco de pedra. Um marco de sangue. Meu 9 de março não tem hérois, nem sinos dobrando esquinas barrocas...