quinta-feira, 14 de março de 2013

Pluviômetro


Nestes dias em que chove gente nas ruas de Recife e os transeuntes finalmente resolvem andar olhando para cima, mesmo que não seja buscando a contemplação do espetáculo celeste e sim preservar sua integridade física, ousei contemplar o espetáculo patético de nosso desespero. Ah como gostamos de resolver as coisas dando saltos mortais de vigésimos andares de prédios decrépitos e como gostamos mais ainda de ficar ali circundando a poça desconjuntada na calçada enquanto não chega nossa vez de pedir ao ascensorista: “Último andar, por favor. Vou chover sobre Recife.” Não, não se preocupe que ele não vai te achar um louco, muito menos olhar dentro de seus olhos procurando os indícios de tua insanidade, ele mesmo já marcou a atividade pluviométrica dele para as oito horas, prefere a noite, tem algo de poeta este ascensorista, querendo chover entre as estrelas, pra depois estourar-se entre estrumes e latinhas de cerveja no meio fio. Naquele momento com certeza os boletos, os recibos, os exames, os processos e toda sua vida de merda e papéis estufando sua parca carteira não passarão do chão duro da Avenida Dantas Barreto, sem contar os segundos que ele terá num voo tantas vezes adiado, desde a infância, embora naquela época ainda esperasse uma aterrissagem menos traumática. Hoje sabe que terá uma morte instantânea, já fez todos os cálculos, velocidade do vento, seu peso vezes x e mais um bocado de sorte para cair de cabeça, tudo pensado para não dar trabalho à morte. Mas que coisa, este herói quase me faz perder a direção que eu queria dar a estas linhas! É que ele carrega essa simpatia perturbadora de uma espécie de suicida que te engana direitinho. “Esse cara é de bem com a vida”, “Ele é que é feliz”, “Que inveja desse sorriso, quase rasgando a boca” tudo não passando de um véu frágil, grande fingidor este rosto de bigodes fartos e olhos fundos com uma voragem dentro do peito contando regressivamente para a decolagem. Deixemo-lo subindo e descendo nesta gaiola, cumprimentando a próxima gota deste temporal inesperado, talvez uma senhora bem vestida, segurando seu último cigarro ou um rapazote tímido tossindo ao dar sua primeira tragada, ou então esta moça bonita, este homem de terno listrado, o outro segurando um violão... Veja só como este cubículo está lotando e agora fica difícil definir quem é quem, pois então fiquem assim todos agarrados, subindo, descendo, subindo, desce... até que alguém diga: “Tá bom. Agora eu vou.Cansei dessa brincadeira idiota” E os outros ficarão esperando o baque surdo e a gritaria dos vendedores de pipoca, dos cobradores na janelas dos ônibus, e os passos medidos do policial, mãos presas às costas, revólver cintilando ao cruzar a luz do poste, rosto tão vazio quanto o do menino, ao lado do cigarro que não mais lhe pertence. Que esta cena congele, eu não me propus visitar tantos rostos, queria apenas justificar este meu novo hábito de andar perscrutando as marquises, não é só medo de morrer assassinado por um suicida, é que além do imenso transtorno eu acabaria perdendo a beleza que deve ser o vôo dentro da noite e da cidade, quando tudo vira um só, quadrado dentro do círculo, unidade e fragmento, poesia e bula de remédio, quando nada mais importa. Olho para cima. Imagino as nuvens dançando sobre todos esses tetos e agora que apareceu uma vaga neste elevador tenho que entrar. Um rosto de bigodes fartos e olhos fundos me encara.

“Último andar, por favor. Vou chover sobre Recife”


Jonatas Onofre 18/05/12

sábado, 9 de março de 2013

Sobre calendários e Almas

Um amigo me falou sobre um congestionamento de almas nas proximidades do sítio dos Marcos aqui em Igarassu... sim um grande transtorno para quem tencionava comemorar um dia tão importante como este 09 de março, distante quase quinhetos anos de um outro dia comum com o mesmo marulhar de ondas, com som de pássaros e de folhas sendo remexidas pelo vento... sim... aconteceu um 09 de março maravilhoso para um bando de heróis que pisou neste chão com ordens reais nos bolsos e muito desejo de posse (diga-se direito legítimo de cobiça) no peito e nos olhos. Dia de sol e fim de espera, dia de grandes começos e progresso, uma dia único na vida de vários povos. Uma encruzilhada da história, um capricho do tempo em conspiração com o calendário juliano, uma ruptura na diacronia sempiterna e organizada de nossos livros didáticos. 
Hoje pra mim não é dia de festa... cada segundo desse dia deveria ser preenchido de versos para uma infinita elegia pelos milhares de corpos que o tempo devorou, oficial e sacrossantamente, a partir de um fatídico 09 de março. Não condenarei à mesma condição desterrada dos índios que não mais correm perto das águas aos distintos cidadãos que hoje dançam ciranda perto das águas ou tecem louvor à grande empresa lusitana... mas é uma pena que não lembrem...nem chorem... Dom Duarte e sua imagem severa e fascinante de soldado, administrador, déspota e herói épico de uma Nova Lusitânia que me perdoe a ousada investida destas letras mas calar dói muito mais que o desabafo...
Pois lembremos dos índios em seu congestionamento etéreo que eles devem ter lembrado de hoje também e vieram de onde quer que estivessem com seus corpos pintados de urucum, seus brincos e ossos e seu sangue de Uirapitang, suas feridas de mosquetes e bestas, suas chagas purulentas, seus pulmões podres de uma gripe sazonal inofensiva, seus olhos de indiferença perdidos num céu de araras e nuvens... Ah tantas almas voando enquanto muitos dançam e esquecem e desconhecem seus nomes. Comemoro hoje com marcos de pedra, lama e sangue o início de um genocídio... e espero que todas as almas organizem-se em fila indiana para seu passeio por aquelas bandas e voltem logo para seus lugares... afinal tem muita gente que deve estar louca pra fazer festa hoje e engrandecer grandes vultos de nossa história... neste grande dia de nossa vergonha... e pelo visto alma de índio só atrapalha numa hora dessas.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Castrati

Pesava-lhe o verbo,
entre as pernas.
Por isso capou-se
numa manhã de oficina.

Hoje pesa-lhe
entre as pernas
uma elipse