A melodia adensa-me nas coisas e na cena, sentir a música é muito mais que ouvir é um deixar-se devorar pelo som, é um ser- som... e os acordes, as escalas, e as vozes povoando o vazio, e o dedilhado nas casas da viola, as cifras fulgindo verdes, rubras, douradas do braço dos violões, das teclas cromáticas do cravo, do saltério que repousa no colo de acalantos, das cordas pendentes dos seios da pastora casta. O quarteto vocal derrama-se em dissonâncias, e um sudoeste vadio arrasta ora para longe, ora para perto a cantiga flutuando nas águas claras do Velho Chico. A sereia despiu-se mais, o rio se fez mais veloz, a melodia tornando-se árvore e sombra sobre a barcarola e os corpos delgados dos trovadores enrolando-se, rolando numa ciranda, fundindo-se em carne e nervo, incendiando-se com o diabolo in musica, tão longe agora o patíbulo e as chamas e o Santo Ofício. Ieronimus Bosch e Bach confabulam ao fundo numa chuva de partituras, telas pincéis e trompas inflamadas... tão instantânea é esta cena construindo-se, como este texto ensandecido, como este ouvinte preso ao feitiço daquilo que lhe pedra no peito e queima nas mãos... e os dedos já me pedem sons... e agora deixai-me pegar meu violão, que para nada serve o dizer nestas horas embriagadas:
"Noite longe que ficou em mim
quero levar. ( Geraldo Azevedo / Carlos Fernando )"