sábado, 13 de novembro de 2010

O vôo de H.


Sai A rua invade seu corpo Cada partícula de luz som e lixo violentando suas entranhas Passos mínimos quase um deslizar na calçada Num chão encardido cachorros e homens É como se não lembrasse mais dessas coisas exatas da cidade. Uma menina quase nua, boca sem dentes, olhos grandes e líquidos, cabelos emaranhados em negrume.

- Dá um real, moço. É o balbúcio da criança

Ele treme. Pára.

- Vamos, é só uma vagabunda.

Foi um leve susto, ouvir a voz ao seu lado e lembrar que durante todo o tempo estavam ali, passos parelhos aos seus, as mesmas figuras inexatas, guardando-o. Guardando-o do quê? Percebe que está andando de novo, a menina de olhos d’água ficou para trás. Esqueceu-a. Eles ao seu lado. Por que não falam mais? Esse véu de silêncio, coisa disforme pesando sobre as cabeças curvadas, a conduzi-los não se sabe para onde, talvez onde o nada sonoro seja apenas água estagnada, poça onde se afoguem, solidão. Parece que se deram conta da gravidade das coisas e do que vão fazer. Agora tudo é solene. Caminham.

***

A estrutura de concreto cresce à sua frente. Seu corpo vibra. Estancou.

- Deve ser o mais alto.

- Isso é loucura.

Ignora as vozes vazias, que todos vão à merda com sua censura. Nunca entenderiam. Volta a andar, em sua mente também desfilam as lembranças...

-... Sete meses de vida...

Daquela conversa com o médico, só gravara aquele fragmento. Recebeu-o como um soco no meio da cara, diante de si um velho de branco, olhos breves sob sobrancelhas sumidas na face alva. Esperou a morte, temeu a dor, mas não fugiu. Leito de hospital Inércia Gemidos suspiros cheiro de morte e uma paisagem branca anulada Todas as noites de sua vida condensadas num quarto azul mesa sem flores janela sempre fechada no teto uma flor de metal girando girando girando...

Uma noite, quando a escuridão foi mais forte, sentiu um abraço esquálido ossos a envolver-lhe o corpo parco falanges esmagando seus tumores gritou de sua boca saíam as coisas mais improváveis: guarda-chuva girassol um quadro de Mondrian televisores e um morcego amarelo. 40 graus de febre e breu.

Quando a manhã lhe despertou, sentiu o corpo como não sendo seu, foi um prazer, algo novo em suas sensações. Seria aquilo a ressureição? Fruto de um milagre naquela manhã distante?

- E aí vai entrar ou não?

Novamente eles o despertam. Desta vez encara os rostos vazios, mas não tem nada para dizer.

- Quer mesmo fazer isso?

Volta a andar, sem encontrar a resposta. Entra no Hall. Silêncio. No elevador faz sinal para que os outros fiquem. Querem protestar Fecha a porta sobe.

No alto, seus olhos perdem-se no azul. Pela primeira vez consegue um pensamento lúcido, tão neutro e branco como as únicas nuvens nesse céu. Agora não há mais lembranças, todas se fundiram, o tempo se fecha numa esfera de vidro, a cidade é apenas a coisa mais suspensa deste momento. Lá embaixo os outros, esperando. O que farão? Não importa, tem plena convicção de sua loucura e da vida. Seu vôo sobre as coisas é o mais intenso até o fim. Pousou.

O segundo seguinte chega com lágrimas. Por que está chorando? Nunca fora homem de sentimentos. Acreditava em milagres? Talvez tenha sido um milagre. Enxuga o rosto e ainda não sabe por que chora. Pela primeira vez desde tantas horas os ares recebem o fio de sua voz, um sopro carregado de vergonha, um segredo que flutua enquanto ele olha para cima:

- Obrigado !

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